A ecologia multiespecífica do turu (Neoteredo sp.) na Amazônia marajoara
Matheus Henrique Pereira da Silva (PPGAS/UFSCar)
A ecologia multiespecífica do turu (Neoteredo sp.) na Amazônia marajoara
Matheus Henrique Pereira da Silva (PPGAS/UFSCar)
Turus pelos furos de pau do mangue. Foto do autor (2023).
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O turu (Neoteredo sp.) é um molusco bivalve da família Teredinidae que habita principalmente os manguezais dos estados do Pará, Amapá e Maranhão, além de outros estados brasileiros (ICMBio, 2018). Ele é encontrado em águas salobras e no interior de pedaços de troncos caídos ou mesmo no casco de embarcações, deixando a madeira caracteristicamente cheia de furos. Seu tamanho pode variar entre 10 e 40 centímetros em média (podendo alcançar tamanhos muito maiores), dependendo da idade do animal, que possui corpo alongado e gelatinoso, além de uma a cabeça sólida e dentição que o auxilia na sua alimentação a partir da matéria orgânica presente nos ecossistemas costeiros (Marques; Batista; Farias; Castro et al., 2025).
Na literatura sobre zoonímia animal relacionada ao período colonial (Papavero & Teixeira, 2014), o turu aparece com os nomes turuygûera, gusano, busano, cupim-do-mar e ubiraçoca. Já nos escritos do Padre João Daniel (2004, p. 219), o turu é descrito como a grande “peste das embarcações do Amazonas, ainda que não é só do Amazonas”, devido ao fato de alimentar-se da celulose da madeira de que eram produzidos as embarcações ao abrirem longas e devastadoras galerias de furos e que enfraqueciam os cascos para formar colônias.
Atualmente, o molusco faz parte da economia, cultura, culinária e medicina da Ilha de Marajó, sendo uma fonte importante de proteína para as comunidades locais, além de estar ligado a uma rede feiras, mercados e à indústria do turismo. O molusco é consumido “natural” ou com limão, cozido, ensopado, ou com farinha de mandioca. Em Soure o turu também é explorado no turismo de base comunitária pelos coletores de turu, conhecidos como turuzeiros (Boulhosa, 2020) moradores de comunidades pesqueiras como Araruna, Barra Velha, Pesqueiro, Céu, Caju-úna e Pedral, localizadas nas áreas de manguezais do município de Soure, que integra a Reserva Extrativista Marinha de Soure (Resex-Mar Soure), criada em 2001 e administrada pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Mapa da RESEX Marinha de Soure estampada no Plano de Manejo. Destaque para a faixa litorânea em branco e verde. Fonte: ICMBio (2018).
A espécie é mencionada no Plano de Manejo da Resex (ICMBio, 2018) como um dos “recursos naturais” a serem explorados de forma sustentável e cultural pelas comunidades tradicionais, uma vez que, na área de proteção, há muitas árvores de mangue caídas e que não podem ser extraídas por serem consideradas o habitat do molusco (ICMBio, 2018). Os manguezais possuem árvores com mais de 40 metros de altura, sendo afetados pela quantidade de nutrientes e sedimentos da foz da bacia Amazônica; além disso o ecossistema contribui ativamente para a formação da ilha, regulação do clima e outros serviços ecossistêmicos. Atualmente também sofrem uma pressão e estão ameaçados pelo avanço da criação de búfalos em algumas áreas[1], especialmente onde os manguezais estão localizados nos limites de fazendas particulares.
Na Comunidade do Pesqueiro, e, por vezes, em parceria com a vizinha Comunidade do Céu, a experiência de Turismo de Base Comunitária vem sendo desenvolvida por meio da oferta de serviços como passeios e travessias de barco, locação de bicicletas e hospedagem comunitária. É possível agendar visitas para conhecer o ecossistema de manguezais da região e experimentar a culinária local, incluindo o turu, que atualmente já conta com um roteiro turístico específico.
Manguezais na Amazônia marajoara. Foto do autor (2023).
Seu Catita é um pescador e turuzeiro local que trabalha com turismo ecológico há 25 anos. Nascido na Vila do Pesqueiro, é considerado “filho do Pesqueiro”, onde exerceu a atividade da pesca durante 12 anos, atuando em embarcações no mar aberto. Aposentou-se pela colônia de pescadores e, na época do nosso encontro, já estava há quatro anos vinculado ao ICMBio. Ele guiou nosso passeio em uma rabeta (embarcação motorizada), com seis pessoas a bordo, percorrendo uma série de igarapés e furos no município de Soure. A saída ocorreu na Praia do Tapereba, na Comunidade do Céu, com destino às praias do Caju-úna. No trajeto, navegamos pelo Igarapé do Seminário, Igarapé Du Volta e Furo do Miguelão. As faixas de mangue ao longo das margens dos rios e igarapés variavam em largura e altura, a vegetação chegando, em alguns trechos, a cinco metros de altura segundo o turuzeiro.
Seu Catita falou que viu essas faixas de mangue se formarem ao longo do tempo e que as próprias vilas pareciam se “distanciar” umas das outras devido às mudanças no território. Ele também comentou sobre a constituição das praias, a importância dos manguezais para a região e as preocupações da comunidade em relação aos recentes projetos de pesquisa e exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, que podem afetar profundamente a dinâmica da vida humana e outra-que-humana no ecossistema costeiro.
Paramos a embarcação para iniciar a coleta do turu; logo ficou evidente o entendimento da região do mangue e o cuidado do coletor ao observar em qual parte mangue ir, ou mesmo qual estágio de decomposição da árvore ou tronco. Seu Catita explicou que a colônia de turu se forma dentro de troncos de árvores integral ou parcialmente submersos no mangue, ou em árvores e troncos que são derrubados pela maré e pelo movimento das águas, como a árvore do mangue-vermelho (Rhizophora mangle). Outro sinal observado são os furos feitos nos troncos ou mesmo ao tateá-los tronco para verificar se estão ocos. Árvores consideradas “verdes” (recém caídas) não servem de habitação para o turu. Além disso a coloração da água em torno do tronco também indica a atividade e presença de animal: por exemplo, se um tronco estiver caído e houver alguma pequena poça de água com coloração avermelhada ou barrenta há possivelmente atividade de decomposição da madeira por uma colônia da espécie.
Neste ponto do mangue, havia um tronco de árvore caído e cheiro de furos, que precisou ser cortado com machado, exigindo bastante esforço do turuzeiro. Ele explicou que alguns turuzeiros utilizam motosserra para facilitar a extração, mas que ele optava pelo “modo tradicional” por estar ligado à atividade turística, o que também incluía utilizar facão ou qualquer outro objeto pontiagudo. Seus pés afundavam na água barrenta e lodosa enquanto manejava firmemente o machado, sempre o golpeando em um determinado ponto de forma lateral para retirar o turu inteiro e não despedaçado. Quando finalmente conseguiu abrir um pedaço do tronco, puxou-o e nos apresentou os moluscos: alongados, escorrendo pelos furos da madeira.
Seu Catita realiza os cortes na madeira de modo a não atingir o molusco.
Foto do autor (2023).
Um a um, o turuzeiro os retirava, colocando-os em uma vasilha, enquanto explicava que o turu cresce durante o período das cheias – conhecido como “grandes águas” –, que ocorre entre fevereiro e abril. Nessa época, a maré retira água dos rios e traz grande quantidade de material orgânico que nutre os manguezais e a vegetação.
Ao entrar no barco, ele organizou os moluscos em duas bacias, junto a uma faca, um espinho retirado de uma árvore do mangue, água mineral e limão. Primeiro, apontou para a coloração escurecida do animal. Com o espinho em mãos, explicou que esse era um “recurso” natural do coletor no mangue, usado para limpar o turu: com a ponta afiada, passou o espinho pela parte central do corpo do molusco, retirando os resíduos de lama. Em seguida, demonstrou que esse mesmo processo poderia ser feito com facilidade usando a faca. Depois, lavou os turus com água e limão, adicionou um pouco de sal e ofereceu um deles a uma visitante, pegando outro e o ingerindo ao natural, sem adição de limão ou sal. A expressão de alguns presentes inicialmente contendo um pouco de “medo” ou “repulsa” foi derrubada ao acompanharem o processo completo e provarem o sabor. Uma das visitantes acrescentou que o gosto seria muito similar ao de ostras.
Logo que tive a oportunidade pude experimentar o molusco: primeiro, um fio gelatinoso na boca, onde não o mastiguei e senti que o sal e o limão de alguma forma foram preponderantes no sabor; então comi de forma “natural”, o que foi notável para o destaque de seu sabor alcalino, amadeirado, e de sua textura viscosa e macia. Ao comentar a observação quanto à similaridade comentada pela turista em relação as ostras, seu Catita acrescentou dizendo que se “a ostra tem sabor do mar”, o turu teria o “sabor do mangue”. Por fim, seguimos para a Praia do Céu, onde foi possível almoçar em um restaurante local e experimentar a sopa de turu e seus efeitos “afrodisíacos”, como mencionam os moradores locais em relação à saúde e ao vigor físico e sexual proporcionados pelo prato.
Turu extraído das árvores pau de mangue. Foto do autor (2023).
Seu Catita limpa o molusco com um espinho. Foto do autor (2023).
Nesse percurso de atenção aos modos de vida e à ecologia multiespécie que envolve o turu, os manguezais e os turuzeiros da região, foi possível observar de perto as práticas de coleta da espécie, bem como pensar como os manguezais são peças fundamentais na sustentação da vida – humana e outra-que-humana – nessa porção da Amazônia. A arte da atentividade etnográfica (van Dooren & Kirksey & Munster, 2016) nos lembra que conhecimento e vida estão profundamente enredados, e que atentar para a dinâmica ecológica da vida e do viver pode ser a base para repensarmos as possibilidades de vida compartilhada.
Acompanhar turuzeiros é uma forma de conhecer, engajar-me e narrar histórias de vidas outras-que-humanas, reconhecendo a importância dos outros seres (van Dooren & Rose, 2016), além de evidenciar a relevância ecológica, social, econômica e cultural dessas relações, especialmente para as comunidades tradicionais da Amazônia. Assim, turu, mangue e turuzeiros emergem como agentes em histórias emaranhadas, marcadas por processos de cotransformação que envolvem o regime das águas, a vegetação e o ecossistema amazônico.
Seu Catita degusta o turu. Foto do autor (2023).
Referências citadas
Marques, André; Batista, Danilo; Farias, Caio; Castro, Larissa et al. 2025. Commercialization dynamics of turu Teredo sp.: Tradition and economy in the Atlantic Amazon. In: Batista, Danilo; Silva, Alexandre; Mourino, José; Martins, Mauricio (eds.) Commercial dynamics of Amazonian species. Florianópolis: Editora da UFSC, pp. 11-22.
Boulhosa, Marinete da Silva. 2020. Turismo de base comunitária: em busca de caminhos sustentáveis para o turismo na ilha do Marajó. Paper do NAEA, Belém, 29(3): 1-18.
Daniel, João. 2004. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto.
ICMBio. 2018. Plano de Manejo da Resex Marinha de Soure, Marajó (PA). Brasília: Ministério do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.icmbio.gov.br/portal/unidadesdeconservacao/biomas-brasileiros/marinho/unidades-de-conservacaomarinho/2296-resex-marinha-de-soure
Oliveira, Cynthia, & Mattos, Carlos, & Santana, Antônio. 2016. Aspectos Produtivos e Socioeconômicos do Arranjo Produtivo Local Bovino e Bubalino no Arquipélago do Marajó, Estado do Pará. Revista em Agronegócio e Meio Ambiente, 9(1), 25-45.
Papavero, Nelson; Teixeira, Dante. 2014. Zoonímia tupi nos escritos quinhentistas europeus. Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa. São Paulo: FFLCH/USP.
Santana, Antônio, & Mattos, Carlos, & Oliveira, Cynthia. 2011. A cadeia de valor da pecuária de corte e leite em Soure e Salvaterra, Marajó – PA. Relatório Técnico: Instituto PEABIRU, p. 70.
van Dooren, Thom; Kirksey, Eben; Münster, Ursula. 2016. Multispecies studies: Cultivating arts of attentiveness. Environmental Humanities, 8(1): 1-22.
van Dooren, Thom; Rose, Deborah Bird. 2016. Lively ethography: Storying animist worlds. Environmental Humanities, 8(1): 77-94.
Notas
[1] Na RESEX mencionada vigora a proibição da criação de animais de grande porte como bois, cavalos e, sobretudo, búfalos (exceto daqueles utilizados como animais de carga, em número limitado e cadastrados no ICMBio), devido aos impactos ambientais reportados por técnicos do instituto (Mattos & Oliveira & Santana, 2016; Santana & Mattos & Oliveira, 2011). Por outro lado, alguns moradores realizam a criação destas espécies devido à vantagem econômica, alegando que o animal é “adequado” às caraterísticas socioecológicas da ilha e não afetaria seu equilíbrio ecológico. Ademais, muitos fazendeiros, que não estão instalados na RESEX, deixam seus animais pastarem no interior da UC, fato já denunciado pelas comunidades pesqueiras. A situação ocorre em virtude de o búfalo ser um animal que procura terrenos alagados, o que, em caso de sobrelotação, contribui para a degradação de áreas mais frágeis, devido ao pisoteio e pastoreio excessivos, aterrando as áreas naturalmente alagadas, mesmo onde existem enseadas no manguezal (áreas de transição entre campos naturais e mangue).
Publicado em 21/07/25.
* Matheus Henrique Pereira da Silva é doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É integrante do Humanimalia - Antropologia das Relações Humano-Animais e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Como citar: Pereira da Silva, Matheus Henrique. 2025. A ecologia multiespecífica do turu (Neoteredo sp.) na Amazônia marajoara. Blog da Capivara, disponível em: https://humanimaliaufscar.net/blog-da-capivara/turu.