Jequitiranaboia, a cobra que voa
Felipe Vander Velden (PPGAS/UFSCar)
Jequitiranaboia, a cobra que voa
Felipe Vander Velden (PPGAS/UFSCar)
Jequitiranaboia (fotografia de Arthur Chapman/Creative Commons).
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Pouca gente, ao que parece, tem a oportunidade de ver esse estranho animal na natureza. Trata-se de uma jequitiranaboia – faço uso deste termo porque foi como primeiro aprendi sobre o inseto, que é também chamado de jaquiranaboia, jitiranaboia, tiramboia, tiranaboia, cobra-de-asa, cobra-do-ar, cigarra-cobra, serpente voadora, cigarra-doida e muitos outros (Cascudo, 1998, p. 473; Costa Neto & Pacheco, 2003, p. 27-28). O inseto pertence à ordem Hemiptera (a mesma dos mais conhecidos percevejos, cigarras, pulgões e cochonilhas), à família Fulgoridae e ao gênero Fulgora (Linnaeus, 1758), que ocorre nas regiões tropicais das Américas do Sul e Central, do sul do México ao norte da Argentina, e por todo o território brasileiro. Nove espécies são descritas, a mais comum delas sendo Fulgora laternaria, nome científico cuja tradução combina os nomes da deusa dos relâmpagos na mitologia romana (Fulgora), tendo origem na palavra latina fulgur, “relâmpago”, com a expressão, igualmente do latim, “aquele que ilumina com lanterna”[1]. Nome curioso, de fato, que torna as coisas ainda mais saborosas quando se oferece a tradução da denominação comum do inseto, proveniente do Tupi yaki ou yeki, “cigarra”, rana, “parecido com, semelhante a”, e mboya, “cobra, serpente”, ou seja, “uma cigarra parecida com cobra”. Eduardo Navarro (2013, p. 157, 271, 427) traz, a partir de Marcgrave (Historia Naturalis Brasiliae), as formas îakyrana (JAQUIRANA) como “cigarra, nome comum dos insetos homópteros”, mboîa (ou BOI, MBOI, MOI), “cobra, serpente”, e rana, “parecença, semelhança (...) – parecido com, semelhante a; o que parece” – mas não oferece os termos reunidos na designação da jequitiranaboia. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Houaiss & Villar, 2009, p. 1126) nos dá *yakïrana’mboya > yakïrana ‘cigarra’ + mboya ‘cobra’ como etimologia da forma jaquiranaboia, mas informa algo bastante interessante na entrada para jequitiranaboia (Houaiss & Villar, 2009, p. 1131): que esses insetos fulgorídeos são “tidos como perigosos para as árvores e o homem”.
Perigoso para árvores e humanos. Aqui encontramos as ideias dos Karitiana, um pequeno grupo de língua Tupi-Arikém que vivem em sete aldeias (cerca de 450 pessoas) no norte do estado de Rondônia, a respeito do inseto... ou da serpente. Com efeito, concordando com o conhecimento Tupi que nos deu o termo comum para o animal, os Karitiana chamam as jequitiranaboias de boroja papydna, literalmente “cobra (boroja) que tem asas (papydna)”, uma serpente alada. E eles dizem mais: que se trata da serpente mais venenosa que conhecem, “é muito venenosa”: provida de um “esporão” (ou “dente”) no peito, se uma delas choca-se contra o tronco de uma árvore ou mesmo pousa nela para dormir, a planta irremediavelmente morre – “não tem cura, não”. Por esta razão, igualmente, não é de bom augúrio falar muito dela, pois as pessoas, por terem os corpos “moles”, são ainda mais frágeis diante do seu veneno e de seu “esporão”, que se diz atravessar os corpos humanos quando dos choques com o animal, fazendo a vítima inchar rapidamente e “arrebentar”: se suas extremidades forem puxadas, contam, elas se desprendem, dilacerando o desmontando o corpo. Ainda assim, Antonio José Karitiana certa vez comentou comigo que as boroja papydna são os “filhos aleijados” das mariposas, basyk, sustentando, talvez, algum parentesco ou uma similaridade entre homópteros e lepidópteros da perspectiva indígena, como veremos adiante.
Em trabalhos anteriores (Vander Velden, 2011, 2020), apresentei partes do mito de origem das serpentes, que resumo aqui, na versão narrada por Valter Karitiana em 2003, com alguns acréscimos de informações obtidas posteriormente:
A origem das cobras (por Valter Karitiana)
“Diz que Karitiana raptaram criança de outro índio inimigo, opok pita, e ela cresceu com Karitiana. Criança chamava Orowo. Cresceu, um dia foi ajudar companheiro que mulher não gostava [o marido insatisfeito]. Aí índio raptado falou: ‘mata ela’. ‘Como?’ Aí ele pegou e fez taquara [ponta de flecha] bem apontadinha [afiada], forma de cabeça de cobra, por isso cobra têm cabeça compridinha, bem apontada. Aí ele transou com mulher menstruada e que teve criança [que acabaram de ter filho], e limpava pinto [pênis] sujo de sangue com taquara. Primeiro testou taquara com macaco, triscou de leve, e macaco morreu. Ele botava sangue de mulher na taquara, deixa secar, tenta de novo, se ficava com pouco veneno, ele botava mais e tentava de novo, até ficar com muito veneno. Depois botou taquara suja de sangue no caminho de mulher para buscar água. Mulher triscou na taquara e sentiu muita dor, e morreu, se pegava [tocasse] no corpo dela, arrebentava. Karitiana usou muito taquara para matar outro índio inimigo, para guerra. Um dia, Orowo esqueceu taquara no caminho para aldeia do índio inimigo. Já estava longe ele lembrou e voltou. Daí ele viu, puxou taquara, já estava transformando em cobra, estava duro [?], deu para pegar, mas já tinha muita cobra, muita gente já estava morrendo. Diz que era tempo todas as cobras do mundo eram venenosas. Daí que índio raptado, Orowo, diz para pegar mel de abelha, e sentou sozinho no j̃omby [o banco cerimonial Karitiana], mandou todo mundo ficar dentro de casa. Ele assoviou, veio um monte de cobra: cobra batia cabeça no banco e abria a boca, e homem colocava mel na boca delas. Cobra que recebeu muito mel não ficou mais venenosa. Mas mel foi acabando e cobra mais venenosa só tomou gotinha de mel. Da raspa que caiu quando Orowo fez taquara apareceu aranha, caba [marimbondo], formiga, tocandeira, formigas de fogo, escorpião, lacraus, por isso tudo isso causa dor até agora”. “Cobra que não recebeu remédio [mel] são as mais venenosas: boroja papydna [“cobra com asas”, jequitiranabóia] e boroja’o [literalmente, “cobra-cabeça” que, dizem, é semelhante a um sapo]. O remédio era boko se e on’se misturados [boko se e on’se são méis de dois tipos de abelhas]. Cobra que tomou muito remédio não tem veneno hoje. Cobra que tomou só gotinha tem pouco veneno. Cobra que não tomou são mais venenosas”.
Notemos que Valter coloca a jequitiranaboia entre as demais cobras, mas como a mais venenosa das serpentes, pois a última a chegar e, portanto, a nada receber do mel – ou receber “só gotinha” – que, como “remédio”, expurgou as serpentes não peçonhentas de seu veneno. Outro interlocutor, Elivar, acrescenta que boroja’o é o nome específico (“nome de verdade”) do inseto, sendo boroja papydna um termo genérico que se refere ao fato de possuir asas. Sua descrição aponta, efetivamente, para a jequitiranaboia: “é cobra que voa, ela é como borboleta, só tem cabeça, ela tem olho, olho dela fica embaixo da asa dela”. O termo boroja’o traduz-se como “cobra cabeça”, porque, diz-se, o animal tem “só cabeça”, pois ele “é liso, não tem corpo, é mal transformado, é tipo assim, mariposa, cabeça dela é transparente, não tem formação definida; só tem cabeça, não tem corpo”. Temos, assim, algo como uma “cabeça voadora”; e uma cabeça de cobra, cujo formato é aquele das taquaras utilizadas na fabricação das pontas das flechas lanceoladas – e de onde emergem, conforme o mito reproduzido acima, as serpentes. Talvez isso explique porque as jequitiranaboias são consideradas as mais venenosas entre as cobras: sendo simples “cabeça”, esses seres parecem constituídos apenas pela ponta venenosa das setas de taquara, cujo formato espelha aquele das cabeças das serpentes, “bem apontadinhas”.
Será que a ausência do termo composto – que podemos supor, îakyrana + mboîa – no Dicionário de Tupi Antigo de Eduardo Navarro sugere que tratar-se-ia, este nome, não da designação de uma qualidade de animal pelos Tupi antes ou logo no momento da invasão portuguesa, mas o produto da língua Tupi colonial? Atentemo-nos para o vocabulário Português-Nheengatu publicado por Ermano Stradelli em 1929 (2014, p. 369) que traz, este sim, o termo composto, mas para a Língua Geral Amazônica, cuja origem ocorre pós-invasão: IAKYRANA-MBOIA, “cobra cigarra. Jaquiranaboia, Fulgura lanternaria [sic]”, em que o vocábulo IAKYRANA é definido, em sua própria entrada, como “falso grilo” ou “casta de cigarra e de falena”; como o termo “grilo” aparece, em outro lugar (Stradelli, 2014, p. 229) como Ieky, teríamos, então, a Iakyrana como, suponho, “aquilo que se parece com um grilo”[2]. Stradelli acrescenta algumas observações para explicar a origem da palavra jequitiranaboia como “cobra cigarra” que vale a pena reproduzir:
“Um pobre inseto caluniado como muito perigoso por ser a sua ferroada venenosíssima, quando não é senão uma inócua cigarra. Apesar disso, e porque tenho sempre encontrado no indígena um exímio observador da natureza, se foi ele que lhe deu o nome e lhe fez a fama de que goza, alguma razão deve haver. A iakyrana, como cigarra que é, tem uma espécie de ferrão por meio do qual se nutre, fincando-o na casca das árvores, especialmente dos ramos novos, para sugar-lhes a seiva. Este ferrão, todavia, quando o animal está em repouso ou voa, e dele não se serve para a sucção, fica recolhido ao longo do ventre e não parece que com ele possa ferrar ninguém, mesmo no caso de vir o inseto a bater sobre alguma parte descoberta do corpo. Se o pudesse fazer, porém, então talvez poder-se-ia ter uma explicação do nome e da má fama. Seria fazer a hipótese de ter-se a jaquiranaboia nutrido do sumo de alguma planta venenosa (e há abundância destas na floresta), e de ter vindo nesta condição bater contra alguém, ferrando-o com o ferrão envenenado: hipótese que apesar de tudo não parece admissível” (Stradelli, 2014, p. 369, meu grifo).
Busca Stradelli uma explicação plausível – mas que não lhe afigura satisfatória, como observa ao final do parágrafo – para o que dizem os falantes do Nheengatu e os Karitiana: que as jequitiranaboias são muito venenosas, e podem envenenar as pessoas ao chocar-se contra elas usando seu “esporão” ou “ferrão”. Não obstante, o mesmo autor parece duvidar de uma origem propriamente indígena do vocábulo, conforme o trecho destacado acima. Ora, se não foram os indígenas que deram o nome e a fama à estas estranhas cigarras, quem terá sido?
Seria preciso buscar as denominações para o inseto em outras línguas indígenas ou, pelo menos, em outras línguas afiliadas ao tronco linguístico Tupi. Mas, lamentavelmente, a informação sobre este estranho animal é escassa, como, de fato, o é para os artrópodes em geral, muito pouco estudados entre as sociedades ameríndias. Martius (Spix & Martius, 1976, p. 134-135) presenciou, em 1820, o terror de um grupo de indígenas na Praia do Catalão, arredores da Barra do Rio Negro (a futura Manaus), que fugiu apressado e gritando quando uma “jacarenambóia” – uma “cobra-jacaré”, como o viajante traduz o vocábulo nativo – apareceu voando nos arredores, pois que consideravam um inseto “em extremo peçonhento”. Câmara Cascudo (1998, p. 473), relendo von Martius, argumenta pela possível origem indígena da “tradição ameaçadora” da jequitiranaboia.
Entre os Baniwa (de língua Aruak, no noroeste amazônico), por exemplo, não encontramos, ao que parece, uma associação entre as jequitiranaboias e as serpentes, mas, sim, a noção de que esses insetos são venenosos: os yakilana (as jequitiranaboias, Fulgora sp.) são dotados de uma “espora” que, se “ferrar, a dor só passa se a pessoa fizer sexo”. Somos informados, contudo, que elas se parecem com makálo, as borboletas, e não com cobras (Petiza, 2011, p. 100-101). Note-se, apenas, que os Karitiana, como vimos acima, igualmente comparam as jequitiranaboias às borboletas, pois, umas como as outras, “só têm cabeça”; entretanto, esta deve ser uma comparação geral para todos os seres cuja segmentação corporal é percebida como indiferenciada. Já os Xerente, grupo de língua Jê no Brasil Central, as jequitiranaboias são denominadas anquecedarti, palavra cuja tradução, idêntica à denominação Karitiana, significa “cobra alada” (Posey, 2003, p. 226). Os Xipaya, Tupi (família Juruna) na região do Xingu, chamam o animal de kurudjí φutắ, cuja tradução, “mucura cobra” (Nimuendajú, 2015, p. 237), indica uma relação com as serpentes (e com as mucuras, ou gambás, por suposto), mas não disponho de dados adicionais sobre o insólito significado da expressão. São, ademais, tão perigosas que os indígenas na Terra Indígena Rio Guaporé, também em Rondônia, matam-nas a tiros, segundo me contou Gabriel Sanchez em comunicação pessoal. E isso foi tudo o que logrei localizar na literatura, e agradeço se leitoras e leitores desse modesto ensaio puderem contribuir com nosso conhecimento sobre os saberes nativos a respeito dos fulgorídeos neotropicais.
A caracterização das jequitiranaboias por vários povos ameríndios, contudo, é notavelmente semelhante àquela encontrada entre comunidades não indígenas no Brasil e mesmo em outros países sul e centro-americanos, e “do Atlântico aos Andes” – vipera volanda (Gilmore, 1997, p. 269; Costa Neto & Pacheco, 2003). Com efeito, Câmara Cascudo (1998, p. 472-473) anotou referências à jaquiranaboia – termo que ele prefere –, já espalhadas pelo Norte e Nordeste do país, em tudo idênticas àquelas oferecidas pelos Karitiana: “o dizem portador de veneno fulminante, ressecando as árvores às quais mete o estilete ventral, que possui, para sugar a seiva”, inseto de “caráter assombroso, parecendo um pequenino dragão alado”. Afirma, ainda, o folclorista potiguar que a cigarra, segundo conta o povo, “é cega e voa em linha reta, ferrão em riste, matando infalivelmente a quem ferir”; chamo a atenção, ademais, que uma das denominações coletadas por Cascudo para o animal é, justamente, “cobra-de-asa”. Lenko e Papavero (1996, p. 119-128) sumarizaram as diferentes descrições da jaquiranaboia – “‘quasímodo’ do mundo dos insetos”, de aspecto “extravagante e abstruso”, “cobra cega, asa transparente de cigarra, terrivelmente venenosa. Nem os paus secos escapavam. Se enterrava o ferrão na lenha, dava bicheira, apodrecia o moirão” – em diferentes partes do país, incluindo o interior paulista, mais especificamente na cidade de Nova Odessa, não muito distante de São Carlos...
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Na chave classificatória do mundo vivo ou animado oferecida pelo povo indígena Karitiana – fundada, ao menos em parte, na sua experiência da floresta e nas práticas de interação com o mundo natural circundante – as jequitiranaboias ou jaquiranaboias são serpentes, mais propriamente serpentes aladas e muito venenosas, sendo assim classificadas juntamente com as demais cobras que habitam seu território. Tal concepção desses singulares outros-que-humanos – criaturas “crípticas, noturnas, solitárias, silenciosas e raras” (Costa Neto & Pacheco, 2003, p. 27, minha tradução), como vimos, não é restrita aos Karitiana, uma vez que eles também são conhecidos por outros grupos indígenas e popularmente, no Brasil e fora dele, como “cobra com asas” ou “cobras que voam”, muito em função do formato singular de suas cabeças, que se assemelha à de um réptil. A pergunta, afinal, que devemos colocar é: trata-se, neste caso, de uma circulação de conhecimentos indígenas para contextos não indígenas vizinhos? Ou, antes, o contrário: a passagem dos saberes sobre um animal do universo dos não indígenas para o que se conta nas aldeias originárias?
Penso que esta indagação sobre as origens últimas não enriquece a discussão. Isso porque mais instigante, parece-me, é pensar nesses saberes compartilhados como produzidos nos ou derivados dos próprios encontros entre sistemas de conhecimentos nativos e não nativos. Deste modo, não cabe buscar o centro de origem de putativas conexões, mas de investigar os eventos de contato que produziram noções difundidas entre variados coletivos indígenas e não indígenas, de filiações linguísticas, proveniências geográficas e backgrounds socio-históricos diversificados. Podemos argumentar que, desde uma posição estruturalista, efetivamente a excêntrica aparência reptiliana da jequitiranaboia, seus hábitos de voo, e a presença do assim chamado “esporão” ou ferrão”, tenham oferecido, ao pensamento tanto ameríndio quanto euro-americano, dados sensíveis similares que acabaram por produzir uma serpente alada de alta periculosidade e, num segundo momento, a extensa inteligibilidade da imagem, em diversos contextos e múltiplos eventos de contato entre modos de conhecer. Por outro lado, a ampla difusão dos mesmos atributos do inseto poderia ser explicada historicamente, a partir ou da vasta dispersão dos povos de língua Tupi – incluindo, claro, os Karitiana, de língua Tupi-Arikém – ou, mais recentemente, por meio da expansão dos conhecimentos Tupi (ou, mais apropriadamente, luso-tupi, ou brasílicos) pelo imenso território nacional e regiões vizinhas por força das andanças dos paulistas de norte a sul e de leste a oeste, tal como se verifica, entre outros casos, pela inusitada distribuição do termo tapira e variantes quando aplicado aos bovinos de procedência exógena (cf. Vander Velden, 2023).
Mas se os Karitiana compartilham com outros povos a noção de que jequitiranaboias são cobras, a relação destas – e, por conseguinte, daquelas – com as flechas – pois flechas têm “cabeças” (pontas) que foram (e são) serpentes, ou cabeças de cobras foram (e são) flechas – parece original, propriamente Karitiana, conectando-se a um novo conjunto de ideias partilhadas por ainda outros povos, no interior de um sistema incessante de transformações no qual as setas e os ofídios estão intimamente relacionadas (cf. Vander Velden, 2020).
Procurar pela pureza das origens, afinal, seria um desperdício de esforço diante das mais ricas potencialidades de abordar os produtos dos contatos, no que eles podem nos dizer tanto histórica quanto estruturalmente. Sabemos da extensa distribuição de certos seres – o curupira, a caipora, o mapinguari, os donos/pais/mães/mestres dos animais ou da caça, entre vários outros –, práticas e saberes – a reima, o panema, a pajelança, os benzimentos – por todo o território brasileiro, entre grupos indígenas e não indígenas, entre povos tradicionais e modernos, o que vem sendo notado por incontáveis autores e autoras desde pelo menos o século XIX (vários livros de Câmara Cascudo podem ser consultados como bons exemplos disso). Expressos por vocábulos nas centenas de línguas nativas do país – indígenas, afro-brasileiras ou de imigrantes, e, óbvio no português em seus múltiplos falares regionais – a extrema difusão desses objetos ainda requer análises e interpretações mais refinadas. Penso, contudo, que a busca pelos contextos originários dos conhecimentos sobre esses seres, saberes e práticas, se marcou durante largo tempo a ênfase nos estudos, deve dar lugar a investigações que abordem, precisamente, as complexidades históricas e etnográficas das interações entre distintas comunidades neste rincão do Novo Mundo.
Vale lembrar, para concluir, que mesmo as categorias classificatórias dos seres – “animal”, “inseto”, “homóptero”, “fulgorídeo” – devem ser sempre objeto de escrutínio. A pergunta sobre por que a jequitiranaboia é uma cobra, e não um inseto – ou seja, uma espécie de anomalia categorial ou “problema de taxonomia zoológica” (cf. Bulmer, 1967), sequer faz sentido, tendo em vista que os Karitiana não agrupam um conjunto de seres numa classe particular denominada Insecta; a rigor, portanto, não existem “insetos” (Vander Velden, 2012, pp. 263-264). Não obstante, podemos notar que, por outro lado, a conexão entre insetos e serpentes, se não é estranha ao pensamento indígena, tampouco o é aos sistemas de conhecimento tradicionais ou de certos segmentos da sociedade brasileira, se tomarmos em conta a difundida ideia de que a categoria “inseto” agrega seres geralmente percebidos como perigosos e venenosos, ou inúteis e eminentemente matáveis, sem serventia e não comíveis (Moreno, 2024; Stefanuto, 2024), agrupamento heterogêneo que pode incluir organismos não relacionados do ponto de vista zoológico (lineano), como aracnídeos, moluscos, anfíbios, mesmo mamíferos e, claro, répteis (Costa Neto, 2004, p. 122-123). Se as cobras podem ser consideradas um tipo de “inseto”, é fato que um “inseto” pode, afinal, ser um tipo de cobra.
Referências citadas
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Notas
[1] https://chc.org.br/coluna/serpente-e-lamparina-so-no-nome/ (acesso em 24/04/2025).
[2] Os Arikapú (família Jabuti, tronco Macro-Jê) chamam uma espécie grande de cigarra de werätxi, cuja tradução literal é “mãe do grilo” (Arikapú, Arikapú & van der Voort, 2010, p. 51).
Publicado em 18/06/2025.
* Felipe Vander Velden é docente do Departamento de Ciências Sociais (DCSo) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É coordenador do Humanimalia - Antropologia das Relações Humano-Animais.
Como citar: Vander Velden, Felipe. 2025. Jequitiranaboia: a cobra que voa. Blog da Capivara, disponível em: https://humanimaliaufscar.net/blog-da-capivara/jequitiranaboia.