O carrossel das vacas, ou sobre como girar em círculos se tornou um destino disciplinar na pecuária industrial
Leandra Holz (PPGAS/UFSCar)
O carrossel das vacas, ou sobre como girar em círculos se tornou um destino disciplinar na pecuária industrial
Leandra Holz (PPGAS/UFSCar)
Carrossel de ordenha de vacas leiteiras.
Para baixar o arquivo em PDF, clique aqui.
A primeira vez que me deparei com uma imagem de um sistema de ordenha de vacas leiteiras denominado de rotativo, carinhosamente apelidado de “carrossel de ordenha” no Brasil, intrigou-me a semelhança com o modelo arquitetônico do Panóptico, idealizado por Jeremy Bentham no século XVIII, e usado por Michel Foucault em suas análises sobre os modos de vigilância, controle e disciplinamento nas sociedades modernas. O Panóptico, essa “jaula cruel e sábia” como observou Foucault (2014, p. 199), poderia funcionar com um único vigia central para observar todos os prisioneiros, sem que estes soubessem quando estavam sendo observados, e assim internalizando o controle. Tal estrutura tornou-se símbolo do poder disciplinar, que molda comportamentos por meio da vigilância constante e da normalização[1].
De partida, gostaria de lembrar aos leitores que o próprio Foucault declarou em suas análises e, de acordo com o que pretendia Bentham, que o modelo panóptico era perfeitamente replicável: “Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado” e “[...] em cada uma de suas aplicações, permite aperfeiçoar o exercício do poder” (Foucault, 2014, p. 199). Ainda assim, a questão que se coloca aqui não é tanto se o carrossel de ordenha de vacas leiteiras pode ser pensado inserido nesse modelo panóptico, mas, antes, o que a ordenha industrial das vacas, estruturada por tecnologias de vigilância e repetição, nos ensina sobre o alcance do poder disciplinar na contemporaneidade, sobretudo aplicado às vidas outras-que-humanas.
Já no primeiro olhar, vemos que o carrossel das vacas possui uma plataforma circular composta por celas (ou baias[2]) individuais bastante estreitas, que ficam dispostas em seu entorno e servem para limitar a movimentação dos animais no momento da ordenha. Uma ao lado da outra, mas separadas em compartimentos, as vacas podem receber alimento em um cocho situado à sua frente ou não, a depender do modelo de carrossel adotado, enquanto são realizados todos os procedimentos de ordenha: limpeza dos tetos com soluções antissépticas, encaixe dos dutos de sucção da máquina de ordenha e outra aplicação de soluções (normalmente tendo o iodo como o principal princípio ativo) para desinfecção ao término, ações que podem ser robotizadas ou realizadas com mão de obra humana. O que olhar para a imagem não capta, mas podemos pressupor, é o fato de que todo o processo é feito com a plataforma girando (daí o seu nome “carrossel”), fazendo com que, ao final de uma volta de 360°, cerca de 40 vacas sejam ordenhadas em apenas 10 minutos, a depender do número de baias, tendo em vista que os projetos variam de acordo com o tamanho do rebanho[3].
Amplamente divulgado como o sistema de ordenha mais eficiente da atualidade, não é apenas uma semelhança física ou estrutural entre o carrossel das vacas e o Panóptico que é facilmente observável. “Perfeitamente individualizado e constantemente visível”, diz Foucault, “o dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente” (2014, p. 194). Salvas as limitações dessa comparação, o carrossel das vacas segue propósito semelhante, tendo em vista que a automatização do sistema de ordenha permite que mesmo um número grande de animais possa ser conhecido e reconhecido individualmente, conformando a tal “pecuária de precisão”. Ao acionar o movimento da engenhosa plataforma, sensores permitem identificar o número que corresponde à vaca a ser ordenhada, de modo a armazenar informações sobre a sua sanidade, taxa de reprodução e cio, média de produção, vacinas em dia e tudo mais que é necessário para um gerenciamento racional do animal.
O antropólogo Paul Hansen (2013) etnografou uma fazenda industrial de laticínios em Hokkaido, ilha mais setentrional do Japão, observando as mudanças causadas sobretudo pela introdução do sistema de ordenha rotativo (rotary parlour). De acordo com a sua análise, a mudança para o sistema rotativo alterou drasticamente o estilo de vida dos proprietários, suas famílias e funcionários, separando-os das relações cotidianas com o gado. Assim, os membros da família rural tornavam-se “gestores distanciados” de suas vacas e do trabalho como um todo (Hansen, 2013), mas é preciso lembrar, no entanto, que essa é uma das vantagens anunciadas nas notícias sobre a importação desse sistema para o Brasil: a gestão racional do rebanho, e também a redução significativa de mão de obra, pois chegam a indicar que o trabalho que antes era feito por cerca de vinte pessoas, agora facilmente é feito por três. Não distante do que se pretendia com o Panóptico, a saber, como diz Spíndola (2011, p. 2), “[...] resolver o problema de como controlar um número crescente de pessoas empregando um número reduzido de controladores”. E, como vimos anteriormente, controlar indivíduos em larga escala era o problema a ser solucionado pelo panoptismo. Poderíamos dizer então que o ato de criar vacas cedeu espaço para a ação de gerenciar unidades produtoras de leite?
Pode ser que eu esteja levando essa comparação um pouco a sério demais, talvez muito influenciada pelo trabalho que desenvolvi no mestrado (Holz, 2022) sobre como o mecanismo de poder da profissionalização, alinhado ao discurso neoliberal de maior eficiência, melhor desempenho e mais produtividade, opera sobre a vida de agricultores familiares e cooperativas, tornando-os “gestores profissionais” de suas propriedades – que também se tornaram lugares onde o “amadorismo” não deve ter mais espaço. Bom, pelo menos é o que dizem órgãos agropecuários, grandes cooperativas e demais instituições do setor agrícola. Mas para além disso, permitam-me voltar a atenção para alguns trabalhos que analisam formas industriais de criação animal, sem a intenção de levantar uma revisão bibliográfica sobre o tema, mas sim de sugerir elementos a essa comparação que decidi explorar.
Em seu texto sobre “A busca pela carcaça perfeita”, Ana Paula Perrota (2019) dialoga com autoras como Jocelyne Porcher e Joana Medrado, mostrando que a pecuária passou a operar segundo princípios da racionalidade industrial ao tomar como fundamento, critérios zootécnicos para a “produção animal” que visam ajustar o corpo dos animais para o maior rendimento, seguindo padrões do mercado internacional. A pecuária tornou-se, assim, uma atividade industrializada, especializada na extração e transformação eficiente da matéria-prima animal, constantemente ajustada e melhorada por intervenções zootécnicas. No caso de bovinos destinados ao abate, “[...] há uma instrumentalização das funções orgânicas dos animais para atender as demandas do mercado, de modo que o funcionamento de seu organismo deixe de ser contingente e se torne controlável (Perrota, 2019, p. 172, grifo meu). Nesse sentido, há um gerenciamento dos corpos dos animais e um controle dos seus processos vitais como um todo, a fim de que suas “carcaças”, perfeitamente ajustadas para finalidades econômicas, atendam aos desígnios do mercado e dos consumidores (Perrota, 2019; Sordi, 2013).
Da pecuária que constitui o animal como carcaça ao carrossel de ordenha de vacas leiteiras, tudo aponta para como os corpos dos animais são moldados por racionalidades produtivas e normativizadas. O carrossel, como parte desse processo mais amplo da intensificação dos sistemas de produção animal em larga escala, institui-se como um dispositivo de controle técnico ou, em outras palavras, uma tecnologia disciplinar que molda corpos vivos em função de um ideal produtivo. Tal análise aparece também em estudos que aproximam esses sistemas industriais da lógica panóptica descrita por Foucault. Em um trecho do já citado trabalho de Paul Hansen (2013), o autor faz uma breve comparação entre o sistema de ordenha rotativa e o Panóptico de Foucault, destacando não apenas a semelhança física entre ambos, mas, principalmente, sua função de produzir corpos docilizados e controláveis, trecho que reproduzo aqui:
A prisão panóptica é também um sistema de produção: produz docilidade, individualização e alienação dos corpos por meio da supressão do contato físico e afetivo. Trata-se de um sistema no qual cada "detento" é codificado, e seu progresso individual é mapeado e armazenado em um repositório central. É um sistema em que as relações entre o mantido e o mantenedor são idealmente desumanizadas - ou seja, desprovidas de emoção ou afeto - distantes, frias, clínicas e fundamentadas na necessidade de tomar decisões impessoais e distanciadas. No caso da produção rotativa, essas decisões estão intrinsecamente ligadas à produção corporal bovina: vale a pena mais uma tentativa de inseminação artificial? O ferimento merece atenção? Já é hora de ser vendida como carne? [...] O carrossel de ordenha, assim como a prisão panóptica, é claramente também um sistema de controle, onde os cuidadores vigiam, registram e decidem, enquanto os vigiados são incapazes de testemunhar ou resistir a essa invasão ou vigilância. E, por fim, trata-se de um sistema em que há uma dissolução das hierarquias internas. Para além da relação entre cuidador e cuidado, tanto as estruturas sociais bovinas quanto humanas são colocadas em questão; como o gado, é importante notar que os trabalhadores humanos podiam ser facilmente substituídos, e frequentemente o eram, sem que isso prejudicasse o sistema de produção (Hansen, 2013, p. 10, minha tradução).
Conforme se adentra na maquinaria, vemos que o carrossel das vacas não se limita a extrair leite, mas atua como uma engrenagem em um regime mais amplo de controle técnico e distanciamento afetivo, onde decisões sobre a vida (ou morte) do animal são tomadas com base em cálculos de eficiência. O corpo bovino, nesse contexto, é registrado, classificado, vigiado e até mesmo moldado para corresponder a um ideal produtivo, o que, em linhas gerais, implica em um gerenciamento racional de suas vidas. O antropólogo Jeremy Deturche (2019), em sua pesquisa com criadores de vacas leiteiras na França, perto da fronteira com a Suíça, observou os efeitos da implementação de um sistema de ordenha robotizado. Segundo o autor, o sistema de gerenciamento animal possui uma lista tão completa sobre aquelas vacas que o robô é capaz de produzir um “corpo virtual” para cada uma delas, sendo visto como um recurso para uma compreensão mais profunda dos animais e consequentemente do manejo individualizado destes. Essa “computação de dados sobre corpos animais” permite aos criadores ainda, comparar esses “corpos virtuais” entre si: “[...] consideram genealogia, dados sobre a produção de leite, comportamentos específicos no curral, entre outros” (Deturche, 2019, p. 12, minha tradução).
O fato é que esses dados disponíveis para gerenciamento influenciam diretamente nas práticas de manejo adotadas pelo estabelecimento. Uma vaca cuja saúde do úbere está prejudicada pode ser facilmente identificada e posteriormente descartada, assim como aquelas que apresentarem comportamentos difíceis de serem remediados, como é o caso da autossucção (quando uma vaca mama nela mesma) ou quando uma vaca adulta mama em outra. Avisos de cio implicarão em novas inseminações, e alertas de queda de produtividade resultarão em novas dietas. Isso considerando que essas vacas já são selecionadas geneticamente para sua maior produtividade e docilidade (Cole, 2011; Hansen, 2013).
De acordo com o trabalho de Cole (2011, p. 85-86), é possível observar que muitas das características que Foucault atribuiu ao poder disciplinar parecem servir para pensar as experiências outras-que-humanas em sistemas industrializados, sobretudo no que tange ao potencial das práticas intensivas na produção de “corpos dóceis” por meio da distribuição espacial, vigilância e correção. No caso da pecuária leiteira, os confinamentos já cumprem por si só tal função, ao enquadrar os animais em baias, camas ou canzis, e separar os espaços de deitar, os de circulação livre, e as salas (de espera e de ordenha). São também espaços onde se busca remediar determinados comportamentos, considerados pela ciência do bem-estar animal como “anormais” ou “estereotipias” (Malafaia et al., 2011), causados pelo estresse nesses ambientes confinados. Estou desenvolvendo trabalhos sobre os artefatos de enriquecimento ambiental e como estes têm buscado emular um “natural” por meio de artefatos e ambientes artificiais, visto que a etologia dirá quais comportamentos são “naturais” das vacas e quais precisam ser remediados porque “não naturais”.
No caso do carrossel de ordenha, também é possível observar imediatamente um controle do espaço, já que as vacas estão posicionadas individualmente em baias em um sistema circular e rotativo. Na sequência, pode-se ver o controle do tempo no giro da plataforma, que dura um ciclo preestabelecido no qual todas as vacas têm o mesmo tempo para liberar o seu leite, pois o processo de ordenha é finalizado quando a volta se completa. As vacas também são treinadas para se comportar de forma a colaborar com o funcionamento do sistema, sem empacar para entrar na máquina ou causar tumultos na sala de espera. É claro que nem todas seguem as normas ao passo, e falarei disso mais adiante, mas percebam, ao olhar a imagem do carrossel, que a estrutura física das baias não dá chance para muitos movimentos, sendo que as vacas entram de frente e precisam sair “de ré”. No fim das contas, o corpo útil é produzido, seja por meio da seleção genética e de viverem em função do seu ciclo reprodutivo, seja pelo treinamento e contenção de seus movimentos e do tempo. São corporalidades dóceis e, sobretudo, economicamente otimizadas.
Mas um dos aspectos mais curiosos é que a maioria dessas práticas e estruturas próprias da pecuária industrial estão vinculadas e sendo disseminadas em associação com uma ideia de conforto (Holz; Vander Velden, 2023) tanto para os animais como também para os humanos. É o que dizem os manuais zootécnicos sobre confinamentos, e é também o que se diz do carrossel de ordenha que, dentre os principais benefícios, vale destacar:
• Conforto animal: Cada vaca é posicionada individualmente em sua baia, desenhada especificamente para suas dimensões, de acordo com sua raça (Ex.: Holandês ou Jersey). Mesmo individualizadas, as vacas continuam mantendo contato visual com suas companheiras, o que as deixam mais tranquilas e confortáveis.
• Conforto aos ordenhadores: A rotina de ordenha em uma rotatória permite ao ordenhador o mínimo de caminhada, quando comparado com os outros sistemas de ordenha (Ex.: Um ordenhador chega a caminhar cerca de metade da distância que percorreria em um equipamento estático tipo “paralelo”). Além do que ele pode dar foco total em sua tarefa, visto que não mais precisa se preocupar com o posicionamento dos animais (DeLaval, 2017, página web[4]).
Aqui me parece pertinente a comparação feita por Cole (2011, p. 88) de que “[...] as disciplinas humanas também são legitimadas por um discurso de bem-estar – ser reformado, curado, educado ou bem treinado é apresentado como algo para o benefício do disciplinado”, assim como se pretendia nos espaços de disciplinamento analisados por Foucault (2014). E, nesse caso, também é preciso lembrar de um ponto central do poder disciplinar: ele não se apresenta apenas como punição, mas como correção, aperfeiçoamento, evidenciando seu aspecto produtivo. Da mesma forma que prisões, escolas e hospitais prometem formar sujeitos melhores, o manejo técnico da pecuária industrial se ancora na promessa de oferecer condições de bem-estar para maximizar a produção, como se produtividade e conforto fossem literalmente sinônimos. No entanto, o que está em jogo é mais um regime normativo[5] de funcionalidade do corpo, do que o bem-estar em si: vacas alimentadas na medida exata, com espaço controlado, tempo monitorado, produção registrada. O animal deve “estar bem” para produzir bem, e essa equação reduz o bem-estar à capacidade de seguir girando no carrossel sem resistência. Também não quero com isso dizer que não haja condições de disciplinamento e dominação em sistemas que não industriais, mas me parece necessário voltar o olhar para o modo como a retórica do conforto animal (e também humano) tem sido incorporado por essas estruturas modernizantes, pois as políticas bem-estaristas podem elas mesmas ser pensadas na chave de uma tecnologia disciplinar.
Por fim, à luz de Vinciane Despret e outras pesquisadoras e pesquisadores das relações humanos-animais, gostaria de reservar um espaço para falar que “as vacas trapaceiam” (Despret, 2021, p. 263). Em contextos de criação intensiva e extrema tecnificação da produção, como é o caso do carrossel de ordenha aqui explorado, pode parecer que os corpos das vacas estão inteiramente subordinados à lógica da produção e do controle técnico. No entanto, autoras como Vinciane Despret (2021) e Donna Haraway (2022) nos convidam a pensar de outro modo, e ver que os animais respondem, testam, negociam e fazem saberes emergirem, e a relação com esses seres sempre envolve certo grau de complexidade. As vacas obviamente não são seres passivos, elas colaboram ou não com a rotina de ordenha, têm comportamento autônomo, e podem inclusive criar condições de burlar ou no mínimo atrapalhar os procedimentos instituídos por robôs, como mostra o trabalho de Porcher e Schmitt (2010), ao destacar que é pelo não cumprimento das regras impostas pelo robô de ordenha que se pode constatar que as vacas sabem como a máquina funciona, o que também é confirmado pela pesquisa de Deturche (2020), na qual criadores relatam situações em que vacas dão ou não dão leite, conforme sua vontade, e são capazes de reter leite a depender da relação com o criador, do ambiente e da personalidade de cada uma.
Assim sendo, achar que vacas são meras máquinas inertes, ainda que em sistemas industriais como o carrossel - máquinas dentro de uma máquina -, sem agência, manipuladas pelos produtores como se fossem uma ferramenta qualquer para atingir um objetivo, é uma ideia enganosa, como explica Javier Taks (2021) em suas pesquisas com produtores de leite uruguaios. Isso não implica em negar, como mostrei ao longo desse texto, que as relações com esses seres sejam marcadas por uma tendência à crescente reificação destes, mas sim que as relações com as vacas revelam-se muito mais complexas, particulares e, portanto, diversas, do que se pressupõe ou se deseja (Taks, 2021). E os modos tradicionais e locais de criação animal estão aí para nos lembrar disso, como mostram os trabalhos de Marília Kosby (2019) sobre mulheres e vacas no extremo sul do Rio Grande do Sul, a “lida campeira” enquanto um modo de vida etnografado por Rieth e colaboradores (2016), e a minha própria pesquisa de campo com famílias pomeranas e suas vidas constituídas junto e em função das vacas leiteiras, entre muitos outros trabalhos.
Com esse texto, tentei explorar como a máquina panóptica, idealizada por Bentham e tomada como exemplo de poder disciplinar por Foucault, oferece subsídios interessantes para se pensar o carrossel de ordenha de vacas leiteiras dentro de uma lógica industrial de criação animal que se volta à vigilância e à padronização dos corpos bovinos em função de um ideal produtivo. Assim como no modelo panóptico, o poder que opera sobre as vacas é disciplinar e normativo, e busca extrair delas o máximo rendimento com o mínimo de desvio. O corpo da vaca é segmentado em dados, suas capacidades monitoradas em tempo real, e sua trajetória na cadeia produtiva constantemente reavaliada. Contudo, se se quer analisar o carrossel de ordenha como uma espécie de materialização do panoptismo na agroindústria leiteira, é preciso considerar também as brechas, resistências e zonas de ambiguidade que revelam os limites do controle técnico sobre os corpos animais. Os animais não se deixam governar inteiramente, e os humanos que com eles convivem sabem disso. Assim, mesmo em meio a sistemas altamente racionalizados, persiste a necessidade de contato, de ajustes, de afetação mútua. Pensar criticamente os modelos industriais de criação é urgente, não apenas por seus efeitos sobre os animais, mas também pela forma como molda as próprias relações entre espécies.
Referências citadas
Cintrão, Rosângela Pezza; Dupin, Leonardo Vilaça. 2020. Microbiopolítica e regulação sanitária: desacordos entre ciência e saberes locais na produção dos queijos minas artesanais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, 26(57): 239-274.
Cole, Matthew. 2011. From “Animal Machines” to “Happy Meat”? Foucault’s Ideas of Disciplinary and Pastoral Power Applied to ‘Animal-Centred’ Welfare Discourse. Animals, pp. 83-101.
DeLaval. 2017. O que é a famosa sala de ordenha "Carrossel"? Milk Point. Disponível em: https://www.milkpoint.com.br/canais-empresariais/delaval/o-que-e-a-famosa-sala-de-ordenha-carrossel-107836/. Acesso em: 20 ago. 2025.
Deturche, Jeremy. 2020. Fazer leite: sobre técnicas de ordenha e a relação entre vacas e criadores na alta Sabóia (França) e no Jura Suíço. In: Jorge, Vítor Oliveira (coord.). Modos de fazer. Porto: Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, pp. 65-86.
Deturche, Jeremy. 2019. “It’s no longer the same job”: robotization among breeders and dairy cows. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 16: 1-28.
Foucault, Michel. 2014. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes.
Hansen, Paul. 2013. Becoming bovine: Mechanics and metamorphosis in Hokkaido's animal-humanmachine. Journal of Rural Studies, pp. 1-12.
Haraway, Donna. 2022. Quando as espécies se encontram. Trad. Juliana Fausto. São Paulo: Ubu Editora.
Holz, Leandra. 2022. A profissionalização em cooperativas como um mecanismo de poder: um estudo de caso da Coopar. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Holz, Leandra; Vander Velden, Felipe. 2022. O que está fora do conforto. Fotocronografias, 8(20): 44–63.
Kosby, Marília Floôr. 2019. Mulheres, vacas e partos nas pecuárias do extremo sul do Brasil: relações transespecíficas a partir do encontro entre antropologia e epistemologias feministas. Tessituras, Pelotas, 7(1): 93-105.
Malafaia, Pedro; Barbosa, José Diomedes; Tokarnia, Carlos Hubinger; Oliveira, Carlos Magno Chaves. 2011. Distúrbios comportamentais em ruminantes não associados a doenças: origem, significado e importância. Pesq. Vet. Bras., 31(9): 781-790.
Perrota, Ana Paula. 2019. A busca pela carcaça perfeita: da criação animal à produção zootécnica. Tessituras, Pelotas, 7(1): 150-177.
Porcher, Jocelyne; Schmitt, Tiphaine. 2010. Les vaches collaborent-elles au travail? Une question de sociologie. Revue du MAUSS, (35): 235-261. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-du-mauss-2010-1-page-235.htm. Acesso em: 16 ago. 2025.
Rieth, Flávia Maria Silva; Lima, Daniel Vaz; Barreto, Eric. 2016. “Lida brabíssima”: a cultura da caça como constituidora da relação entre humanos e animais na pecuária extensiva no pampa brasileiro. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, 11(2): 81-91.
Sordi, Caetano. 2013. De carcaças e máquinas de quatro estômagos. Estudo de controvérsias sobre o consumo e a produção de carne no Brasil. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Spíndola, Pablo. 2011. O panoptismo de Foucault: uma leitura não utilitarista. In: XXVI Simpósio Nacional de História, 2011, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: ANPUH Nacional. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548856708_23f41203ddea33cc065a2e79d0ae69fe.pdf. Acesso em: 20 ago. 2025.
Taks, Javier. Aproximación antropológica al trabajo humano y vacuno en la lechería del Uruguay. Evidencias para una relación de homología. Antropología y Etnografía, vi(2), 2021.
Notas
[1] A perspectiva da biopolítica, embora pertinente à análise da gestão dos corpos animais, não será abordada neste texto, que se concentra no funcionamento do poder disciplinar, tomando como referência o modelo panóptico para pensar o carrossel de ordenha como uma tecnologia de vigilância, repetição e controle que incide sobre as vacas e também sobre os trabalhadores.
[2] Baias são espaços fisicamente delimitados, destinados sobretudo para confinar animais ou manejá-los separadamente, instalações que podem ser de metal, madeira ou alvenaria, para citar os mais comuns.
[3] De todo modo, a orientação geral para fazendas que querem adotar esse modelo é que o rebanho seja composto por no mínimo cem vacas lactantes.
[4] Disponível em: https://www.milkpoint.com.br/canais-empresariais/delaval/o-que-e-a-famosa-sala-de-ordenha-carrossel-107836/. Acesso em: 14 ago. 2025.
[5] Rosângela Cintrão e Leonardo Dupin (2020) fazem uma análise interessante das normatizações sanitárias em torno da produção artesanal do queijo minas, que tomam o modelo industrial como parâmetro e, com isso, colocam a produção sob constante vigilância e disciplinamento. Segundo os autores, trata-se de uma regulação sanitária que se impõe como uma biopolítica, nos termos de Foucault, que busca “[...] governar à distância a atividade econômica, a vida social e a conduta de pessoas e microrganismos, à luz de determinadas concepções do que é bom, saudável, normal, virtuoso, eficiente e lucrativo” (Cintrão; Dupin, 2020, p. 247).
Publicado em 01/09/25.
* Leandra Holz é doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É integrante do Humanimalia - Antropologia das Relações Humano-Animais e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Como citar: Holz, Leandra. 2025. O carrossel das vacas, ou sobre como girar em círculos se tornou um destino disciplinar na pecuária industrial. Blog da Capivara, disponível em: https://humanimaliaufscar.net/blog-da-capivara/carrossel-das-vacas.